São quase duas
horas da manhã, os olhos começam a cansar e as dores de costas não auguram nada
de bom.
Pois é: é
segunda-feira, 1 de Fevereiro de 2010 e apesar do cansaço estou a tentar
terminar uma série de peças, para poder entregar amanhã (hoje) na fábrica para
onde presto serviços como Decoradora de Cerâmica.
Desde Setembro
de 1984 que empresto a esta arte (por muitos considerada menor) a maior parte do
meu dia. Deixado pronto o 9.º ano de escolaridade e na impossibilidade de
continuar estudos em Coimbra, só havia um caminho… a fábrica de Cerâmica - a
saudosa Cerâmica de Conímbriga – escola de todos aqueles, que ainda hoje mesmo
cheios de dificuldades continuam a decorar peças de faiança, que fazem as
delícias de muitos por esse mundo fora.
Na época ainda
era fácil conseguir um “emprego” (vários meses sem ganhar e sujeitar-se a todos
os trabalhos necessários da empresa).
Se foi difícil?
Foi muito. Senti-me crescer depressa sem hipótese de escolha. Foi difícil
entrar num mundo onde ninguém gostava do que fazia; às primeiras dores das
costas, devido à posição, disseram-me que o hábito as levava - não me disseram,
que as piorava mas isso é outra história.
Homens e
mulheres falavam da sua arte numa perspectiva de chegar depressa o fim do mês e
nem esse alegrava os ânimos. Lutava-se na altura por um salário mínimo de
dezassete mil e quinhentos escudos. Isto, para os pintores de primeira
categoria. Os homens ganhavam mais dois ou três contos - dez ou quinze euros. Isto
para os segurar na profissão.
Pouco a pouco
foram apenas sobrando homens solteiros, sem vida familiar para manter porque de
modo algum o seu ordenado lhes garantia uma vida com dignidade. E quantos
pintores vi sair para serventes de pedreiro, pintores de construção civil e
outras mais profissões.
Depois vieram
os apoios comunitários, os cursos de aprendizagem, os subsídios pedidos com o
objectivo de fazer das firmas, escolas, para que a arte que criou raízes e
também a identidade da região não morresse. Na minha opinião foi pior a emenda,
que o soneto: veio muita gente, cursos atrás de cursos, gente que veio pelo
ordenado, pelo subsídio, pela fuga de uma aldeia mais longínqua do centro;
Banalizaram-se
as peças, os motivos não havia uma pessoa a meu ver 100% competente a ensinar e,
este competente, diga-se uma pessoa conhecedora da história da faiança e dos
motivos, do seu percurso. Só quem ama as flores pode tratar de um jardim. Quem
ensinava era muitas vezes necessário a pintar peças de encomendas, e lá ficavam
os aprendizes semanas deixados à sua sorte “borrando” centenas de jarrinhos,
canecas, potichos e outras miniaturas feitas em massa, para ocupar gente
enquanto houvesse subsídios.
Exagero?
Penso que não. Também
ainda apanhei algumas horas de formação, a chamada reciclagem. Porque também
havia subsídios para reciclagem; mas também eu fui muitas vezes retirada da
dita formação, para pintar peças que eram precisas. E os certificados? Numa
formação há direito a certificados…nunca apareceram.
Tempos perdidos
na minha opinião: quem aprendeu nos cursos foi embora, alguns até levavam
apesar de tudo algum jeito. Porque foram embora? Porque a solução era metade do
ordenado da formação ou recibos verdes. Homens nem um ficou. Mulheres? Duas que
eu tenha conhecimento, porque as suas vidas não lhes permitem procurar trabalho
longe de casa e assim continuam a recibo verde.
Perdoem-me o desabafo.
Quanto a mim?
Fui das que fiquei aos poucos comecei a estreitar laços com que fazia a sentir--me
bem quando elogiavam o meu desenho; comecei a pegar em peças com defeitos e a
fazer delas pequenas cobaias de um bichinho, que começava a nascer. Voltei
estudar; tirei licenciatura em História, aprofundei a história da Cerâmica em
Coimbra, o “salto” para Condeixa e ganhei cada vez mais paixão, por uma arte que
vejo desaparecer aos poucos.
Os nossos dias
de crise vão ajudar a um maior afastamento dos ainda pintores da região: as
firmas estão a fechar, quem pintava está agora na casa dos quarenta e tal,
cinquenta e tal anos, segue-se o subsídio de desemprego e o encerramento em
cada um de um espólio de conhecimentos, que dificilmente se tornará público. Restam-nos
meia dúzia de homens que outrora saíram das fábricas e se iniciaram por conta
própria e que nos ateliers de garagem,
conseguem alimentar pequenas encomendas de lojas de recordações, que mesmo não encomendando
muito, permitem um melhor salário do que se estivessem como empregados. São a
última fornada. Não ouço falar de aprendizes, de divulgação nas escolas, de um
clube de Cerâmica de Condeixa, de uma dinamização do que por cá ainda se faz de
bom.
Está solitária
a Cerâmica, está a envelhecer e a não ter a quem contar a sua História e o seu
saber. Tenho pena…muita pena.
P.S. “Quando não se tem cão, caça-se com
gato”, diz o ditado popular, eu que aprendi a amar a cerâmica deixei o ensino
para continuar a pintar. Sem recursos para um forno e com vontade de inovar e de
seguir o meu próprio caminho, ousei experimentar o meu conhecimento em
decoração e motivos tradicionais em Cerâmica e aplicá-los em madeira. Uma
solução? Um escape? Eu diria que acima de tudo uma vontade de não cruzar os
braços, perante a crise económica e procurar aplicar o meu conhecimento, na
busca de uma oportunidade, que pode voltar a fazer renascer o gosto pelo que
caracteriza a minha, nossa identidade.
A ver vamos o
que se segue…
Isaura Marques
Oureça, 1 de
Fevereiro de 2010
Atualmente Isaura Marques, é autora do livro Vamos Pintar Cerâmica, onde consegue manter viva a herança para os mais novos.
Fantástico Testemunho de uma Artista!
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