Edições | Carla Marques e Isaura Marques

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sábado, 24 de abril de 2021

A ÚLTIMA FORNADA

 

São quase duas horas da manhã, os olhos começam a cansar e as dores de costas não auguram nada de bom.

Pois é: é segunda-feira, 1 de Fevereiro de 2010 e apesar do cansaço estou a tentar terminar uma série de peças, para poder entregar amanhã (hoje) na fábrica para onde presto serviços como Decoradora de Cerâmica.

Desde Setembro de 1984 que empresto a esta arte (por muitos considerada menor) a maior parte do meu dia. Deixado pronto o 9.º ano de escolaridade e na impossibilidade de continuar estudos em Coimbra, só havia um caminho… a fábrica de Cerâmica - a saudosa Cerâmica de Conímbriga – escola de todos aqueles, que ainda hoje mesmo cheios de dificuldades continuam a decorar peças de faiança, que fazem as delícias de muitos por esse mundo fora.

Na época ainda era fácil conseguir um “emprego” (vários meses sem ganhar e sujeitar-se a todos os trabalhos necessários da empresa).

Se foi difícil? Foi muito. Senti-me crescer depressa sem hipótese de escolha. Foi difícil entrar num mundo onde ninguém gostava do que fazia; às primeiras dores das costas, devido à posição, disseram-me que o hábito as levava - não me disseram, que as piorava mas isso é outra história.

Homens e mulheres falavam da sua arte numa perspectiva de chegar depressa o fim do mês e nem esse alegrava os ânimos. Lutava-se na altura por um salário mínimo de dezassete mil e quinhentos escudos. Isto, para os pintores de primeira categoria. Os homens ganhavam mais dois ou três contos - dez ou quinze euros. Isto para os segurar na profissão.

Pouco a pouco foram apenas sobrando homens solteiros, sem vida familiar para manter porque de modo algum o seu ordenado lhes garantia uma vida com dignidade. E quantos pintores vi sair para serventes de pedreiro, pintores de construção civil e outras mais profissões.

Depois vieram os apoios comunitários, os cursos de aprendizagem, os subsídios pedidos com o objectivo de fazer das firmas, escolas, para que a arte que criou raízes e também a identidade da região não morresse. Na minha opinião foi pior a emenda, que o soneto: veio muita gente, cursos atrás de cursos, gente que veio pelo ordenado, pelo subsídio, pela fuga de uma aldeia mais longínqua do centro;

 

Banalizaram-se as peças, os motivos não havia uma pessoa a meu ver 100% competente a ensinar e, este competente, diga-se uma pessoa conhecedora da história da faiança e dos motivos, do seu percurso. Só quem ama as flores pode tratar de um jardim. Quem ensinava era muitas vezes necessário a pintar peças de encomendas, e lá ficavam os aprendizes semanas deixados à sua sorte “borrando” centenas de jarrinhos, canecas, potichos e outras miniaturas feitas em massa, para ocupar gente enquanto houvesse subsídios.

Exagero?

Penso que não. Também ainda apanhei algumas horas de formação, a chamada reciclagem. Porque também havia subsídios para reciclagem; mas também eu fui muitas vezes retirada da dita formação, para pintar peças que eram precisas. E os certificados? Numa formação há direito a certificados…nunca apareceram.

Tempos perdidos na minha opinião: quem aprendeu nos cursos foi embora, alguns até levavam apesar de tudo algum jeito. Porque foram embora? Porque a solução era metade do ordenado da formação ou recibos verdes. Homens nem um ficou. Mulheres? Duas que eu tenha conhecimento, porque as suas vidas não lhes permitem procurar trabalho longe de casa e assim continuam a recibo verde.

Perdoem-me o desabafo.

Quanto a mim? Fui das que fiquei aos poucos comecei a estreitar laços com que fazia a sentir--me bem quando elogiavam o meu desenho; comecei a pegar em peças com defeitos e a fazer delas pequenas cobaias de um bichinho, que começava a nascer. Voltei estudar; tirei licenciatura em História, aprofundei a história da Cerâmica em Coimbra, o “salto” para Condeixa e ganhei cada vez mais paixão, por uma arte que vejo desaparecer aos poucos.

Os nossos dias de crise vão ajudar a um maior afastamento dos ainda pintores da região: as firmas estão a fechar, quem pintava está agora na casa dos quarenta e tal, cinquenta e tal anos, segue-se o subsídio de desemprego e o encerramento em cada um de um espólio de conhecimentos, que dificilmente se tornará público. Restam-nos meia dúzia de homens que outrora saíram das fábricas e se iniciaram por conta própria e que nos ateliers de garagem, conseguem alimentar pequenas encomendas de lojas de recordações, que mesmo não encomendando muito, permitem um melhor salário do que se estivessem como empregados. São a última fornada. Não ouço falar de aprendizes, de divulgação nas escolas, de um clube de Cerâmica de Condeixa, de uma dinamização do que por cá ainda se faz de bom.

Está solitária a Cerâmica, está a envelhecer e a não ter a quem contar a sua História e o seu saber. Tenho pena…muita pena.

 

 

P.S. “Quando não se tem cão, caça-se com gato”, diz o ditado popular, eu que aprendi a amar a cerâmica deixei o ensino para continuar a pintar. Sem recursos para um forno e com vontade de inovar e de seguir o meu próprio caminho, ousei experimentar o meu conhecimento em decoração e motivos tradicionais em Cerâmica e aplicá-los em madeira. Uma solução? Um escape? Eu diria que acima de tudo uma vontade de não cruzar os braços, perante a crise económica e procurar aplicar o meu conhecimento, na busca de uma oportunidade, que pode voltar a fazer renascer o gosto pelo que caracteriza a minha, nossa identidade.

A ver vamos o que se segue…

 

Isaura Marques

Oureça, 1 de Fevereiro de 2010


Atualmente Isaura Marques, é autora do livro Vamos Pintar Cerâmica, onde consegue manter viva a herança para os mais novos.




Peças Atelier Cerâmica Rato


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